Conto natalino



24 de Dezembro, de 2010
23:30

Do alto de seus quase 12 anos de idade, Jesus Silva observa deslumbrado pela TV aos preparativos para a grande festa natalina em Nova Iorque. Luzes, fogos de artifício e uma multidão comovida esperando ansiosa para celebrar o nascimento de seu ilustre xará, no grande baluarte do capitalismo contemporâneo.

Jesus dá uma longa tragada na sacolinha que traz consigo.

Mesmo com toda a beleza e pomposidade do evento, algo o deixa intrigado. Apesar da pouca instrução, Jesus sabe que nessa época do ano, neva torrencialmente nos Estados Unidos. No entanto, pela TV exposta na vitrine da loja de eletrodomésticos onde permanece estático observando toda a cobertura midiática do Natal mais belo do mundo, não há o menor sinal de que esteja fazendo frio em NY.

Na Avenida Paulista a movimentação se intensifica. Os relógios marcam 23:45. Faltam apenas 15 minutos para a grande celebração. Famílias se amontoam nas calçadas, flashes espocam ao longo da noite, sinos são ouvidos ao longe. Tudo é terno demais e perfeito demais.

Na TV, um homem engravatado fala sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas causadoras do calor, que privava os americanos da magia dos bonecos de neve por mais um ano seguido. Um funcionário da loja enxota o garoto dalí, e Jesus segue sozinho pela avenida mais cosmopolita de São Paulo.

O menino traga novamente a sacola e os sinos badalam em sua cabeça. As luzes começam a girar e eis o milagre de Natal: neve, em plena Avenida Paulista.

Sem poder acreditar no que está presenciando, com os olhos já marejados de emoção, Jesus avista um velinho simpático, barbudo e rechonchudo que caminha amistosamente em meio à multidão. Ao fundo, uma música celestial ecoa.

Mal contendo as lá grimas, Jesus vai ao encontro do velhinho, e o enlaça no abraço mais aconchegante do mundo. O coração do menino Jesus transborda de felicidade.

De repente, em meio à toda essa comoção, eis que um tapa desconcertante atinge o rosto do menino. Sobressaltado, Jesus derruba longe a sacolinha onde vinha cheirando cola, desde o Paraíso, até a Consolação. Aturdido, olha para seu agressor tentando entender o que se passara. O distinto senhor, de terno e gravata, barbas longas e um caríssimo relógio, afasta-se rapidamente junto aos seus familiares, à procura de alguma autoridade que o pudesse acudir.

Em pouquíssimos minutos, Jesus se vê rodeado por PM´s que, entre socos e pontapés, o enfiam em um camburão. Da janela da viatura, o menino avista a espuma que se passa por neve, jorrando de uma maquinário rústico instalado em uma grande instituição financeira, onde criancinhas perfeitinhas e bem abastadas, entoam cantigas de boas vindas à Jesus "O Salvador":

- "Noite Feeellizzz, noite feelliizzz..."

Em alta velocidade, no carro da polícia, Jesus ainda tem tempo de avistar as luzinhas de Natal, espalhadas estratégicamente por toda a Avenida Paulista. Essas foram as últimas imagens de luz que o menino veria pelo resto de sua vida, que não duraria mais que alguns minutos, embranhando-se rapidamente na mais profunda escuridão.

Os relógios anunciam meia noite. A alegre multidão comemora o nascimento de Jesus "O Messias", nascido em Belém, há mais de 2 mil anos. Enquanto isso, nosso menino Jesus Silva, "O Ninguém", sem pai, nem mãe, nem pátria, nem presente de Natal, jaz, espancado e assassinado, no porta malas de um camburão da polícia militar.

*
Feliz Natal a todos!
São os votos de A Carraspana

por Jefferson Beatnik

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